domingo, 16 de agosto de 2015

Violência, descaso e desconforto no caminho de quem utiliza os trens do Rio

Equipe do GLOBO passou as últimas três semanas viajando nos ramais da SuperVia. Veja o mundo e o submundo dos trilhos

POR CAIO BARRETTO BRISO

16/08/2015 - O Globo

Na Central do Brasil, passageiros disputam lugares num trem do ramal de Japeri Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Na Central do Brasil, passageiros disputam lugares num trem do ramal de Japeri - Domingos Peixoto / Agência O Globo

RIO — O mar revolto de pés e cabeças não para de escoar para fora do trem. Há jovens e senhores, empregados e biscateiros. Uma onda humana de pedreiros, porteiros, diaristas e também bancários, advogados, estudantes. Em comum, a pressa dos atrasados e as pedras do caminho. Deixaram o subúrbio ou a Baixada Fluminense antes da alvorada. Viajaram em pé, colados a outros corpos, por até duas horas. Chacoalharam a uma velocidade média de 42km/h. Quando a multidão invade o saguão da Central do Brasil, já cheia de cansaço, ecoa nos alto-falantes o sax de Pixinguinha. São 6h20m, mal clareou. "Eita, segunda-feira!", exclama um sonolento atendente da lanchonete Central Rio, onde dois mil pastéis serão vendidos até o anoitecer.

Todos os dias, 670 mil pessoas embarcam em uma das 102 estações espalhadas pelos oito ramais da Região Metropolitana. É a população de uma metrópole, maior do que a de Niterói. Apenas 20 municípios brasileiros, do total de 5.561, têm população superior. O prefeito dessa cidade é a empresa SuperVia, que tem mandato até 2048, tempo da concessão mais longa do estado. Os 270 quilômetros de linhas férreas conectam o coração do Rio a 11 cidades vizinhas. Da Central ao ponto mais distante, a estação de Guapimirim, são 76 quilômetros. A SuperVia tem nas mãos um mundo, mas também um vasto submundo. Só quem viaja nos trilhos é capaz de acreditar nas coisas que se passam nos vagões e plataformas. Coisas como um trem avançar sobre um cadáver, autorizado pelo comando da companhia, como ocorreu no dia 28 de julho com o ambulante Adílio Cabral dos Santos. Ex-presidiário de 33 anos, ele tentava reconstruir a vida vendendo balas na linha férrea.

Uma equipe do GLOBO passou as últimas três semanas viajando nos ramais da SuperVia. Cada uma das linhas foi percorrida de ponta a ponta, quase sempre em horário de rush. Logo no primeiro dia, um menor roubou o celular de uma passageira ao lado dos repórteres, enquanto o trem estava parado, com as portas abertas, na estação terminal de Belford Roxo - apenas "Bel", para os íntimos. Da plataforma, ele esticou o braço com agilidade e, pela janela do vagão, arrancou o aparelho do ouvido da mulher, sumindo na escuridão. Eram cerca de 20h30m, a estação estava às moscas. O garoto, de 15 anos no máximo, vestia a camisa 10 da seleção brasileira. Um a zero para ele.

Nesse ramal, circula a maior parte dos trens antigos. São 201 em toda a malha ferroviária, sendo 121 novos, fabricados na China ou na Coreia do Sul, e 80 velhos, das décadas de 50 a 80 - do tempo em que a pernambucana Marinês, a rainha do xaxado, fazia sucesso cantando os problemas dos trilhos em "Trem da Central" ("Vou a pé, de Sputnik, mas não vou de trem"). Antes de 2011, quando a Odebrecht assumiu a SuperVia, as avarias nas composições ocorriam a cada 23 mil quilômetros. Hoje, elas circulam 180 mil quilômetros sem apresentar falhas. Mas é irritante o número de vezes em que os trens, velhos ou novos, ficam parados entre uma estação e outra. Os passageiros passam longos minutos esperando, sem informação. Em um dos trajetos, da estação de Japeri até a Central, a composição fica dez minutos parada. Duas passageiras começam a discutir por um assento.

Uma delas berra que está grávida e passando mal. O vagão fica em silêncio, a mulher ganha o lugar. Poucos respeitam os assentos reservados para idosos, gestantes e pessoas com deficiência - estas, aliás, são as que mais sofrem, pois as condições de acessibilidade das estações não são muito melhores que as da Floresta Amazônica. É comum a cena de cadeirantes sendo carregados nos braços por passageiros - inclusive para entrar nos trens novos, pois há um desnível de um palmo entre a altura deles e a das plataformas.

Acostumada a lidar com os problemas da SuperVia, a defensora pública Patrícia Cardoso, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor, conseguiu quarta-feira um acordo de indenização entre a empresa e a família de Adílio - seus parentes vivem no Morro da Serrinha, em Madureira. Para a defensora, não há desculpas para a falta de segurança no interior da malha ferroviária.

- As pessoas que andam de trem são invisíveis. Ninguém se preocupa com elas - afirma Patricia. - Há um grande ressentimento dos usuários com a SuperVia. Eles se sentem maltratados, e são mesmo. O transporte já não é confortável. Mas ele tem que ser, pelo menos, seguro.

É possível medir a insatisfação dos passageiros pelo número de denúncias feitas à agência reguladora do setor, a Agetransp. De janeiro de 2014 até julho, foram 2.745 registros. Eles podem se transformar em penalidades. Desde 1998, quando o estado licitou a gestão dos trilhos, já são 56 multas - barcas e metrô, no mesmo período, receberam juntos 28. As punições da SuperVia somam R$ 8,6 milhões, dos quais foram pagos R$ 3,5 milhões. É difícil para a Procuradoria Geral do Estado cobrar da concessionária. Do valor ainda não pago, R$ 2,9 milhões já estão inscritos na Dívida Ativa. O estado tenta receber na Justiça o valor. Segundo o TJ, a empresa responde a 4.036 processos - 795 abertos só este ano.


Terra de ninguém. Perto da estação Del Castilho, no ramal de Belford Roxo, famílias vivem em barracos feitos com madeira e tapumes de obras. Na mesma linha é preciso fechar as janelas em alguns pontos, pois os trens são apedrejados - Domingos Peixoto / Domingos Peixoto

Havia um batalhão com 400 policiais que cuidava da segurança das linhas férreas, mas em 2009 ele foi extinto, e hoje 90 PMs policiam esse mundo de gente, trilhos e dormentes - um para cada grupo de 7.444 pessoas. Sem se identificar, um deles diz que as condições de trabalho são terríveis. Há poucos meses, ele e uma equipe foram recebidos a tiros por traficantes na estação de Del Castilho, onde uma favela cresce sem controle à beira dos trilhos.

Com efetivo tão baixo, o submundo impera nos caminhos de ferro. Ao atravessar algumas estações, como Cavalcanti, é preciso fechar as janelas do vagão, pois é comum os trens serem apedrejados. No banheiro masculino da plataforma da Central, quem manda são os travestis e homossexuais que se prostituem ali, onde se paga R$ 1,75 para entrar. Eles ficam em pé sobre os vasos sanitários, com as portas das cabines fechadas, à espera dos clientes. "Vem, amor", chama um homem de cabeça e sobrancelhas raspadas. O banheiro fica a cinco metros da sala da PM.

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